sexta-feira, 2 de outubro de 2020

A magia do "ordinário" ou a espiritualidade do quotidiano

 

Quando nos abrimos às maravilhas da existência, sentimos que a vida é mais que aquilo que habitualmente reconhecemos...


Na companhia de crianças somos, tantas vezes, contagiad@s pela sua alegria transbordante e leveza de ser. Sentimos o seu entusiasmo sem limites ou condições, que nos recorda que também nós, em tempos, sentíamos este maravilhamento pela vida.

Este sentido da vida como algo maravilhoso, transcendente e “mágico” foi-se desvanecendo à medida que crescemos e nos embrenhámos nas expectativas, responsabilidades e obrigações da “vida adulta”. A vida foi-se tornando rotineira, previsível, pouco inspiradora. No meio das ocupações diárias, correndo de uma tarefa a outra, não nos damos conta dos inúmeros detalhes e interconexões que formam a vida em nós e à nossa volta. A “magia” de um sorriso, de um encontro fortuito, de um som distante, ou das cores do céu num fim de tarde… Deixámos de nutrir o “maravilhamento” pela beleza inerente à vida e resumimos o quotidiano à sequencia de tarefas associadas às nossas funções sociais: pai/mãe, esposa/marido, profissional disto ou de aquilo, etc. Perdida a “reverencia” por algo maior que nós, o nosso dia-a-dia, a vida, separa-nos daquilo que nos nutre mais profundamente. Assim, vamos adiando “viver” para um dia mais tarde, quando tivermos tempo...

A nossa sociedade está estruturada, no geral, de modo que a “vida do espírito” está separada da “vida real” no mundo. A espiritualidade pertence ao domínio dos sacerdotes, monges e aqueles que renunciam à vida comum e se retiram num convento. O mundo da vida de família, trabalho, comercio, segue outro caminho, ligado a outros valores. Em sociedades que ainda mantém uma forte conexão com o mundo natural, existe um sentido de respeito e reverencia pelas “forças” maiores que regem e influenciam as nossas vidas. Os ritos e símbolos recordam essa dimensão maior e sagrada da vida mundana. Na sociedade ocidental vivemos desligad@s dos ciclos e ritmos naturais e submersos nas exigências da nossa atarefada vida, parecemos ter perdido a razão da nossa existência. A velocidade e compulsão da vida impedem-nos de conectar com os detalhes dos momentos, que dão forma e textura à vida. Esta desconexão faz-nos perder o sentido de propósito, o sentido do sagrado, assim surge a desmotivação, a frustração, a indiferença. Vamo-nos desconectando cada vez mais dos nossos sentimentos e necessidades, refugiando-nos na apatia ou cinismo.

Quando nos abrimos às maravilhas da existência, sentimos que a vida é mais que aquilo que habitualmente reconhecemos– existem muitas mais dimensões, possibilidades, significados, além dos conceitos e crenças limitadoras que aprendemos vivendo em sociedade, na escola e em família. Reconhecemos que vivemos num universo misterioso de múltiplas interconexões, incrivelmente sofisticado, complexo e belo. Em que nada existe isoladamente e onde cada ser depende da relação com outros e contribuí para o todo que é a vida.

Experimentamos e apreciamos a plenitude da vida e reconectamos com a “magia do quotidiano”, a magia de estar viv@ neste planeta, neste momento, quando apreciamos e valorizamos aquilo que a vida nos oferece, esta vida, feita de “bons” momentos e outros não tão bons” … E oferecemos a nossa presença, que é ela própria vida, aos momentos e tarefas do quotidiano, não importa quão mundanas sejam.

Vivemos num modelo de sociedade em que somos considerad@s unidades separadas, individuais, lutando pela sobrevivência, competindo com outros seres e consumindo recursos. Este paradigma tem levado à destruição da natureza, espécies animais e da rede de interconexões de que depende a vida. Sabemos que o planeta, e os que nele habitam, estão numa condição cada vez mais precária. O propósito da nossa vida não é apenas “conquistar e controlar”, mas servir algo maior que nós mesmos, em serviço da Vida e de todos os seres. A conexão com a “magia” do que a vida nos oferece, é algo que podemos experimentar no dia-a-dia. Uma “espiritualidade enraizada” no mundo quotidiano, que valoriza e reverencia a riqueza da Vida em todas as suas formas, expressões e interconexões, pode mudar radicalmente a qualidade da nossa vida pessoal, certamente contribui para tornar a experiência neste planeta mais rica e para criar uma sociedade que apoia e nutre a Vida.

Considerando que a Vida é dinâmica e está em evolução, a procura de significado, transcendência ou profundidade dá fruto quando o fazemos em harmonia com o viver no corpo, na terra, em família, no trabalho, em sociedade, com reverencia, dignidade e compaixão.

Como podemos nutrir a magia da vida, que constantemente se nos oferece?

Deixo aqui algumas sugestões:   

  • Criando momentos dentro da nossa rotina diária em que nos abrimos à consciência do momento. Por exemplo introduzindo pausas no final de cada tarefa que finalizamos. Fazemos uma pausa e trazemos a atenção ao que estamos a experimentar no momento, sentindo o nosso corpo, sentindo a respiração; neste espaço observamos que há pensamentos e há presença. Neste espaço de presença o nosso ser abre-se à experiência do momento, agradável ou não, esperada ou inesperada. Quando exploramos o momento entramos na sua magia, descobrimos a dimensão onde o que é normal e ordinário se transforma em algo mais… É aqui, neste “lugar” onde a vida ocorre: nas sensações, emoções, no alento da respiração, na textura dos pensamentos, nos desejos, nas desilusões, nas dores, na caricia do vento, … na infinita multitude de expressões que a vida tem em cada momento. Na pausa, deixamos de querer controlar a vida, começamos então a apreciar a riqueza contida nas coisas mais simples.  
  • Introduzindo pequenos rituais que nos conectam com esse algo maior que é a Vida, que nos nutre e sustenta, e que “sacralizam” os momentos ou a experiência; como por exemplo uma prática matinal para o corpo-mente, um momento de oração ou agradecimento, o acender uma vela, o colocar de flores no nosso altar domestico, testemunhar o por-do-Sol, dar toda a nossa atenção àqueles com quem partilhamos uma refeição. As possibilidades são inúmeras …  
  • Nutrindo e cultivando as relações humanas no nosso entorno: que laços podemos fortalecer, que novos laços podemos criar? A vida é feita de “laços” que se nutrem e apoiam mutuamente ...  
  • Cultivando o contacto regular com a natureza na sua forma mais pura, caminhando, respirando e sentindo. Também plantar, cuidar, nutrir a terra e as plantas são formas de nos nutrirmos e sentir a infinita abundância e bondade que nos rodeia ...

Nestes momentos tão desafiantes que vivemos como humanidade, “sentir a Vida” pode ser para nós uma espécie de “boia de salvação”, que podemos também estender a outros…

Que a magia da vida nos contagie e guie. 🙏




Cristina Gondar

Setembro 2020