As cinco etapas do luto e da perda de Elisabeth Kubler-Ross
Ilustração de Cristina Gondar |
Explorando as cinco etapas da perda e dor ...
[continuação]
A vida é um processo de mudança e transformação
do qual a perda faz parte.
Toda a perda traz consigo alguma forma de pesar,
dor e muitas vezes o luto.
A situação planetária que estamos a viver, desde praticamente o inicio do ano, é um evento social profundo, cujas mudanças bruscas e inesperadas trazem consigo perda, angustia, sofrimento e dor. Repentinamente perdemos um modo de vida, com os seus hábitos e normas pré-estabelecidas, perdemos familiares e amigos, contactos e laços sociais; perdemos ainda liberdades e muitos perderam a segurança do sustento, entre outros.
Refletindo em como me tenho sentido durante esta etapa da história da humanidade, dei-me conta de que: “o mundo que conhecia já não existe e não vai voltar”, “é o fim do mundo que conheci e diante de mim está o desconhecido!". Esta realização gerou em mim um labirinto desconexo de emoções, entre elas, tristeza, angustia, frustração, medo e também a esperança de que este seja o início da construção de uma sociedade regida por outros valores...
Para me ajudar a entender o processo de dor, pena e luto por que tantas vezes passamos nas nossas vidas e pelo qual estamos a passar agora de uma forma global, fui buscar as “cinco etapas do luto e da perda” de Elisabeth Kubler-Ross.
Na primeira parte deste artigo explorei as etapas: i) negação ou incredulidade, ii) ira, e iii) negociação. Nesta secção vamos explorar as etapas, vi) depressão e v) aceitação.
♣
Depressão
Nesta fase entramos mais profundo no vazio e tristeza da perda; sentimos a dor mais intensamente. A depressão surge como uma forma de proteção da intensidade emocional dos eventos e sentimentos que estamos a viver. Como descreve Elisabeth Kubler-Ross no seu livro póstumo: “Apeamo-nos do comboio da vida, permanecemos numa neblina de intensa tristeza e perguntamo-nos se faz sentido seguir em frente (…)”i.
A depressão durante o luto é algo necessário e uma forma de bloqueio do sistema nervoso, para que nos possamos adaptar a algo, que sentimos não podemos ainda superar. A tristeza e o vazio que sentimos, permitem-nos explorar o desgosto, sofrimento, mágoa e solidão da perda; são uma forma de purificação.
Na sociedade de hoje a depressão é geralmente vista como algo a erradicar, mas no caso do luto, a depressão obriga-nos a ir mais lento, a refletir sobre a perda e “leva-nos a um sítio, no mais profundo da nossa alma que não exploraríamos em circunstancias normais”ii. Abre o caminho para podermos renascer, mas a “única forma de sair da tempestade é atravessando-a.”
“Apeamo-nos do comboio da vida, permanecemos numa neblina de intensa tristeza e perguntamo-nos se faz sentido seguir em frente (…)”. Com o tempo e à medida que nos tornamos mais capazes de lidar com os sentimentos de dor e perda, a depressão vai desvanecendo-se, mas pode sempre voltar a visitar-nos como parte integrante do luto. E o luto é o processo de renovação. “No luto tal como na morte, há uma transformação para a vida”iii.
Aceitação
Esta etapa vai surgindo a pouco e pouco, em pequenos passos. Vamos deixando de colocar tanta energia na perda e começamos a dedicar-nos à vida. Aceitar não significa que gostamos da nova realidade, ou concordamos com a nova situação, ou até que entendemos o que se passou e nos fez “aterrar” nesta nova realidade. Aceitação também não é resignação, nem conformismo. Significa que reconhecemos que a nova realidade é a realidade na qual vamos explorar de novo a vida e abraçamos a possibilidade de “renascer das cinzas”, tal como a Fénix.
Vamos deixando de colocar tanta energia na perda e começamos a dedicar-nos à vida. Por exemplo, aceitamos continuar o nosso caminho sem a pessoa querida, sem a carreira que pensávamos tão prometedora, sem a saúde que desejamos, ou aceitamos viver numa sociedade que se rege por valores que estão em desacordo com os nossos. Encontramos a paz e começamos a utilizar as nossas capacidades e potencial novamente, em algo em que já estávamos envolvid@s ou embarcamos numa direção diferente.
Aceitar implica que nos abrimos à imensidão da vida, com o que somos e vamos em frente. É isto a que chamamos cura, este integrar de uma nova realidade, em que vão desaparecendo as resistências à mudança, deixamos de querer continuar a manter a vida tal como era antes, e passo a passo vamos criando novas pontes, novas relações com esta realidade emergente.
De algum modo aceitar a dor da perda é uma espécie de perdão: perdoamos à vida por não ter correspondido às nossas expectativas. Integrando a perda e a dor na nossa vida chegamos também à gratidão. A vida não é só o que perdemos, mas também o que recebemos, adquirimos, desenvolvemos e criamos. Eventualmente tornamo-nos capazes de recordar e comemorar a perda. Passamos do “sem-sentido”, de volta ao “sentido renovado”iv.
No entanto, este processo requer que com paciência honremos e dediquemos tempo ao luto, para depois sairmos do outro lado, tal como a crisálida chega a mariposa, depois de passar pelas “dores” da transformação.
Crenças sobre a vida
Quando passamos pela dor da perda, passamos também pela dor da perda das crenças e ideias que tínhamos em relação a como a vida deveria ser. A perda envolve também a perda de certas crenças que temos sobre a vida. Por exemplo: “uma pessoa que cuida da sua saúde não adoece”, “uma relação deve durar para toda a vida”, “a sociedade deve cuidar de todos, especialmente os mais vulneráveis”. Por isso, é frequente pensarmos e dizermos, “isto não deveria ter acontecido.” Assim, quando enfrentamos uma perda, enfrentamos também a perda da crença de que essa perda não deveria ter ocorrido. Quando passamos pela dor da perda, passamos ainda pela dor da perda das crenças e ideias que tínhamos em relação a como a vida deveria ser.
Do mesmo modo que a alma necessita de se recompor e curar depois de uma perda, também o nosso sistema de crenças tem de se reconstruir, evoluindo e adquirindo uma beleza própria que vamos descobrindo. “Pensa num bosque morto em que surge uma plantinha entre toda a devastação. No nosso processo de luto, movemo-nos em direção à vida desde a morte, sem negar a devastação que ocorreu”v .
Onde estou eu neste processo? Ora incrédula… “como é possível que há três meses não possa visitar e abraçar a minha avó de 99 anos, que está num lar?”, “como é possível que a minha mãe não esteja deprimida, isolada depois da suspensão dos contactos sociais e atividades que tinha?”, “como é possível que um vírus pare o mundo ocidental, quando tantas outras doenças que matam milhões noutras partes do mundo, não têm esse poder?"vi. Ora culpabilizando uma sociedade que valoriza o crescimento desmesurado e individualista, é aficionada do controle e da segurança e teima em rejeitar a morte. Outras vezes, penso que talvez dentro de duas semanas “tudo volte ao normal”! Em outros momentos, sinto uma grande tristeza. Entristece-me encontrar conhecidos e amigos e não poder responder à espontaneidade e naturalidade de um abraço. Entristece-me pensar nos efeitos que pode ter o distanciamento social nas crianças e na sociedade. Ao mesmo tempo, sinto uma grande desconfiança sobre a nova realidade que se está a criar. Enquanto noutras alturas, regozijo com as mostras de “renascimento” que o Planeta nos vai dando, desde que o mundo que conhecia foi suspenso, e com os exemplos de solidariedade e compaixão humana que se vão despertando.
Já consegui aceitar que nunca vamos saber a verdade sobre a origem desta pandemia e se é realmente tão perigosa e devastadora como dizem ser. Em todo caso, estou ainda a tentar entender que crenças se desmoronaram, que realidades se desfizeram e a fazer sentido do que está em gestação. No meio desta desolação, incredulidade e insegurança, espero encontrar a energia para voltar a renascer e mais do que nunca, contribuir para esta possibilidade de criar um “novo” mundo do qual me orgulhe.
8 Maio, 2020
Cristina Gondar
www.circulodoser.com
A perda de um mundo que “conhecia” - parte I
O texto completo em PDF, aqui.
Nesta fase entramos mais profundo no vazio e tristeza da perda; sentimos a dor mais intensamente. A depressão surge como uma forma de proteção da intensidade emocional dos eventos e sentimentos que estamos a viver. Como descreve Elisabeth Kubler-Ross no seu livro póstumo: “Apeamo-nos do comboio da vida, permanecemos numa neblina de intensa tristeza e perguntamo-nos se faz sentido seguir em frente (…)”i.
A depressão durante o luto é algo necessário e uma forma de bloqueio do sistema nervoso, para que nos possamos adaptar a algo, que sentimos não podemos ainda superar. A tristeza e o vazio que sentimos, permitem-nos explorar o desgosto, sofrimento, mágoa e solidão da perda; são uma forma de purificação.
Na sociedade de hoje a depressão é geralmente vista como algo a erradicar, mas no caso do luto, a depressão obriga-nos a ir mais lento, a refletir sobre a perda e “leva-nos a um sítio, no mais profundo da nossa alma que não exploraríamos em circunstancias normais”ii. Abre o caminho para podermos renascer, mas a “única forma de sair da tempestade é atravessando-a.”
“Apeamo-nos do comboio da vida, permanecemos numa neblina de intensa tristeza e perguntamo-nos se faz sentido seguir em frente (…)”. Com o tempo e à medida que nos tornamos mais capazes de lidar com os sentimentos de dor e perda, a depressão vai desvanecendo-se, mas pode sempre voltar a visitar-nos como parte integrante do luto. E o luto é o processo de renovação. “No luto tal como na morte, há uma transformação para a vida”iii.
Aceitação
Esta etapa vai surgindo a pouco e pouco, em pequenos passos. Vamos deixando de colocar tanta energia na perda e começamos a dedicar-nos à vida. Aceitar não significa que gostamos da nova realidade, ou concordamos com a nova situação, ou até que entendemos o que se passou e nos fez “aterrar” nesta nova realidade. Aceitação também não é resignação, nem conformismo. Significa que reconhecemos que a nova realidade é a realidade na qual vamos explorar de novo a vida e abraçamos a possibilidade de “renascer das cinzas”, tal como a Fénix.
Vamos deixando de colocar tanta energia na perda e começamos a dedicar-nos à vida. Por exemplo, aceitamos continuar o nosso caminho sem a pessoa querida, sem a carreira que pensávamos tão prometedora, sem a saúde que desejamos, ou aceitamos viver numa sociedade que se rege por valores que estão em desacordo com os nossos. Encontramos a paz e começamos a utilizar as nossas capacidades e potencial novamente, em algo em que já estávamos envolvid@s ou embarcamos numa direção diferente.
Aceitar implica que nos abrimos à imensidão da vida, com o que somos e vamos em frente. É isto a que chamamos cura, este integrar de uma nova realidade, em que vão desaparecendo as resistências à mudança, deixamos de querer continuar a manter a vida tal como era antes, e passo a passo vamos criando novas pontes, novas relações com esta realidade emergente.
De algum modo aceitar a dor da perda é uma espécie de perdão: perdoamos à vida por não ter correspondido às nossas expectativas. Integrando a perda e a dor na nossa vida chegamos também à gratidão. A vida não é só o que perdemos, mas também o que recebemos, adquirimos, desenvolvemos e criamos. Eventualmente tornamo-nos capazes de recordar e comemorar a perda. Passamos do “sem-sentido”, de volta ao “sentido renovado”iv.
No entanto, este processo requer que com paciência honremos e dediquemos tempo ao luto, para depois sairmos do outro lado, tal como a crisálida chega a mariposa, depois de passar pelas “dores” da transformação.
Crenças sobre a vida
Quando passamos pela dor da perda, passamos também pela dor da perda das crenças e ideias que tínhamos em relação a como a vida deveria ser. A perda envolve também a perda de certas crenças que temos sobre a vida. Por exemplo: “uma pessoa que cuida da sua saúde não adoece”, “uma relação deve durar para toda a vida”, “a sociedade deve cuidar de todos, especialmente os mais vulneráveis”. Por isso, é frequente pensarmos e dizermos, “isto não deveria ter acontecido.” Assim, quando enfrentamos uma perda, enfrentamos também a perda da crença de que essa perda não deveria ter ocorrido. Quando passamos pela dor da perda, passamos ainda pela dor da perda das crenças e ideias que tínhamos em relação a como a vida deveria ser.
Do mesmo modo que a alma necessita de se recompor e curar depois de uma perda, também o nosso sistema de crenças tem de se reconstruir, evoluindo e adquirindo uma beleza própria que vamos descobrindo. “Pensa num bosque morto em que surge uma plantinha entre toda a devastação. No nosso processo de luto, movemo-nos em direção à vida desde a morte, sem negar a devastação que ocorreu”v .
♣
Já consegui aceitar que nunca vamos saber a verdade sobre a origem desta pandemia e se é realmente tão perigosa e devastadora como dizem ser. Em todo caso, estou ainda a tentar entender que crenças se desmoronaram, que realidades se desfizeram e a fazer sentido do que está em gestação. No meio desta desolação, incredulidade e insegurança, espero encontrar a energia para voltar a renascer e mais do que nunca, contribuir para esta possibilidade de criar um “novo” mundo do qual me orgulhe.
8 Maio, 2020
Cristina Gondar
www.circulodoser.com
i
Kubler-Ross, E. & Kessler, D. (2016) Sobre
El Duelo y el Dolor. Ediciones Luciérnaga, Barcelona (p.
35).
ii
idem (p.38)
iii
idem (p.211)
iv
idem (p.229)
v
idem (p.92)
A perda de um mundo que “conhecia” - parte I
O texto completo em PDF, aqui.