terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Sobre “os tempos que correm” ou o Elogio da co-dependência

 

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia (…).” Fernando Teixeira de Andrade


O texto que se segue está inspirado num ‘podcast’* sobre, “viver localmente, economia de partilha e a pandemia”, que sinto muito relacionado com a minha vivencia dos encontros da emergente Rede de Alternativas do Ribatejo - esse algo que quer nascer e contribuir para um ‘mundo mais belo’...


O que vem à superfície

Este momento pelo qual estamos a passar, traz à superfície os desequilíbrios que já há muito afligem a nossa sociedade. O distanciamento e isolamento já era algo prevalecente particularmente nos meios urbanos. A teima em ignorar a morte, apostando na extensão quantitativa da vida, negligenciando a qualidade do ‘tempo emprestado’. A abismal polarização entre os que têm acesso à riqueza e ao poder e os destituídos. A obsessão pelo ‘controle’, que nos permite a aparente supremacia sobre a Terra, seus recursos e seres nele habitantes, e o medo de tudo o que possa ser uma ameaça. Assim, incessantemente continuamos a medir, analisar, controlar e eventualmente erradicar o que ponha em causa estes princípios.

Perda de um ser querido

Há muito que sabíamos que o sistema vigente, baseado numa narrativa de separação1, domínio e crescimento ilimitado, não serve a humanidade, a natureza e o planeta. De algum modo o ‘colapso’ já era previsto, até desejado por alguns, mas sempre temido. No entanto, não deixa de ser desconcertante e até aterrador, sentir dissolver-se o mundo que conhecíamos. E neste processo perdemos referencias que nos orientavam, seguranças sobre as quais construímos as nossas vidas, e até aspectos intrínsecos à nossa humanidade, como a proximidade. Este era o mundo onde nascemos, onde aprendemos a viver, com tudo o que oferece, o belo e o imperfeito. Sabemos que não vai voltar, pelo menos como era antes, e não sabemos o que surgirá em substituição. Estamos individual e colectivamente a passar por um processo de perda e luto com as fases que o caracterizam2.

Assim, é provável que nos sintamos num emaranhado cambiante de estados de espírito e emoções, onde o medo do futuro, a insegurança, a raiva e o desespero dão lugar à esperança e euforia, para logo voltarmos à tristeza e depressão. Este caos e confusão por que passamos individualmente é um reflexo do que estamos a passar como humanidade. Um processo em que estão em causa pressupostos, parte da antiga narrativa, sobre os quais construímos a sociedade e as nossas vidas, e nos encontramos em terreno desconhecido.

Vulnerabilidade gestante

Neste espaço de vulnerabilidade em que nos encontramos, onde o ‘normal’ já não existe, podemos talvez descobrir algo de novo sobre nós mesmos, sobre aqueles que fazem parte da nossa vida, sobre o mundo, algo que ainda não tínhamos notado. Neste espaço de vulnerabilidade podemos sentir o que é realmente importante, aquilo de que não podemos abdicar e porventura, questionar-nos como encontrar um equilíbrio entre ‘segurança’ e ‘liberdade’…

Provavelmente já experimentámos nas nossas vidas um momento limite, de colapso ou caos, que nos obrigou a parar e a abandonar hábitos e modos de vida anteriores. E desse limite nasceu uma nova possibilidade, que antes não contemplávamos, mas agora é real. Este ‘nascimento’ necessitou que abdicássemos de estruturas que nos davam alguma segurança, hábitos nos quais nos refugiávamos e até modos de pensar e construções da realidade. Necessitou também que abraçássemos o incerto (mas possível), e assim foi gerado o movimento numa nova direcção.

Tal como a morte de um ente querido, que nos traz tristeza e angustia, mas que também nos liberta do que já não é realmente importante, revelando o que é realmente precioso, reconhecer o que foi e que não será mais, permite-nos deixar partir, o que necessita de partir, e dar espaço ao que quer nascer.

Em serviço de uma nova narrativa

O ‘colapso’ que estamos a viver permite o nascimento de uma ‘nova narrativa’, mas também o regresso, ainda com mais força, da antiga narrativa. Quando actuamos em serviço desta nova possibilidade, podemos construir “o mundo mais belo”3, que sabemos é possível.

O convite é, não permanecermos agarrados ao que foi ontem, mas reconhecer o que é agora, alargar a nossa visão do mundo, contemplar novas possibilidades e manifestar a nossa vontade de criar. Canalizar esta tristeza, frustração, também a indignação e a alienação, para algo de útil, que contribuí para a criação desse ‘algo mais belo’ que sentimos quer nascer.

Surge assim a necessidade e possibilidade de nutrir a proximidade e criar um ‘futuro’ mais local, onde cultivamos as conexões pessoais e de proximidade, onde sabemos quem cultiva os alimentos que consumimos, onde criamos comunidade partilhando conhecimentos e habilidades. Um mundo mais local onde ‘co-dependemos’ de pessoas com as quais nos relacionamos, em vez de estranhos distantes e invisíveis mediados por mercados. A arte e a música, podem deixar de ser ‘bens de consumo’, para se tornar em algo que depende dos nossos relacionamentos e assim criado e partilhado. Viajar pode tornar-se mais um acto de ‘peregrinação’ em vez de um movimento de massas que aliena a vida local. Este mundo mais local baseado numa narrativa de inter-existência, é sem duvida algo mais belo que sabemos possível.

Ser humano em inter-existência

O distanciamento imposto, torna mais claro que, o que nos faz realmente humanos são os relacionamentos, as interconexões, o contacto, as experiências comuns. É tão importante para a nossa saúde, como para uma existência plena e esta necessidade não pode ser satisfeita através dos meios ‘sensorialmente limitados’ da eletrónica. É a escassez de laços e relacionamentos, o que tantas vezes tentamos compensar através do consumo e de hábitos menos saudáveis. Não necessitamos de negar a comunidade num sentido mais abrangente, nem a comunidade virtual, mas podemos ‘cultivar a proximidade’, ‘re-localizar’ o que deve ser local, construir relações multi-facetadas com as pessoas que vivem à nossa volta. É também algo mais profundo que apenas introduzir o “bom dia” ao vizinho. É cuidar uns dos outros e reparar o dano causado ao nosso ser, pelos relacionamentos distantes e impessoais resultado da monetarização da sociedade. Pressupõe o reconhecimento de que não existimos, e nada existe em isolamento. A vida é ela própria uma trama rica e complexa de interconexões e relações. Quando limitamos, separamos e distanciamos criamos pobreza, onde antes havia abundância.

A ilusão da independência

Um dos grandes desafios de hoje é libertarmo-nos da ilusão da ‘independência’, ou seja, a identidade que construimos baseada do pressuposto de que se me rodeio de tudo o que necessito, não necessito de entrar em contacto e relacionar-me com o ‘outro’ e isto dá-me maior segurança. O paraíso da ‘independência’ prometido pelo dinheiro e tecnologia criou o isolamento - uma sociedade de ‘unidades individuais’, separadas, falsamente auto-suficientes. Isto é a antítese da própria vida. A vida faz-se de comunicação, interconexão e interdependência (desde o nível celular ao nível das estrelas e galáxias). Dependemos uns dos outros, de todos os seres, da terra, do sol, da água, dos microrganismos, da vida como um todo. Somos realmente completamente dependentes.

Abraçar a nossa interdependência, confiar que podemos realmente apoiar-nos mutuamente e abrir-nos à incerteza de “navegar por mares nunca antes navegados”. Este é “o mundo mais belo” que nos pede a oportunidade de ser.


Cristina Gondar

www.circulodoser.com

Fevereiro 2021

1    A narrativa da separação é, segundo Charles Eisenstein, a ideia ou principio básico que têm guiado a sociedade ocidental: a minha existência é separada da existência do ‘outro’, o corpo está separada da mente, o humano está separado da natureza. Esta concepcão do mundo vê-nos como seres distintos e separados num universo objetivo de força e massa. Como, segundo este entendimento da realidade, somos entidades separadas do que nos rodeia, devemos competir com o outro e dominar a natureza. Deste modo, o progresso consiste em aumentar a nossa capacidade de controlar o ‘outro’. https://charleseisenstein.org

3    Expressão utilizada por Charles Eisenstein para designar o mundo que é possível criar baseado num paradigma de inter-existência.